quarta-feira, 28 de setembro de 2011

... Sem Perder a Ternura

E o motorista me lembrou que devemos ser gentis. Amontoando aquelas pessoas na frente da lotação, ajeitando-as delicadamente, rindo como quem conversa com amigos numa mesa de bar em dia de folga. Mas é hora do rush. As pessoas têm pressa, eu tenho pressa. Ele continua a sorrir, nem se importa com os gritos, palavrões e no “vai descer” irritadiço. Seu ouvido é seletivo, afinado após anos de sabedoria sobre a pressa alheia e talvez de uma vida toda sobre a sua própria. Agradece a todos que descem: os que retribuem o sorriso, os irritados, os que xingam, os apressados. A sua gentileza não é seletiva. Naquele mesmo caminho, diversas vezes no mesmo dia, as mesmas paradas, os mesmos sinais. Num vai-e-vem até a última viagem, de volta para casa.

Aparenta ter muito mais do que sua idade cronológica. Talvez os cabelos brancos e o rosto enrugado seja reflexo da missão que a vida lhe incumbiu. Criar uma filha que veio ao mundo com um cromossoma a mais. Sem questionamentos, sem lamentações. A criança sentada no banco, vestindo uniforme escolar, no exercício diário da mãe de levá-la à interação com mundo exterior. A mãe aprendeu que para conseguir isto, ela precisa antes interagir com um outro mundo. E o faz com maestria. Acalma a criança que grita, transformando os berros em rugidos de leão numa brincadeira de rei da floresta.

Ela nunca está realmente ali. Aproveita os minutos antes de entrar em contato com a realidade feita de números e metas para repassar os sonhos. Ouve no rádio que a mega sena acumulou e por se achar sortuda acha que este pode ser um atalho para o financiamento do seu projeto que combina criança + artes. Se não for por este meio, será por algum outro. Sempre foi assim, de uma forma ou de outra as coisas acabaram dando certo. Carrega amor e fé tatuados na alma e acredita que isto é mais poderoso que qualquer armadura. Lembra das pessoas que já conheceu, das viagens que já fez, das coisas lúdicas que já viveu. Passa a mão no rosto e sente o nariz gelado, sorri e lembra que este estado do nariz ainda vai se repetir por muitas vezes numa terra longe de roda-gigante bem gigante que está por visitar. Por hora levanta-se e segue seu caminho, aquele dos pavimentos dourados.

Tenho agradecido por estar vivo e ter andado por todos os lugares onde andei e ter vivido tudo o que vivi e ser exatamente como eu sou.

(Caio Fernando Abreu)

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